terça-feira, 20 de dezembro de 2011

"então queres ser escritor?" (Bukowski)

se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração da tua cabeça da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.

se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.

se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.

não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-
-devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.

quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.

não há outra alternativa.

e nunca houve.

Tradução de Manuel A. Domingos

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Mulher de 79 anos morre de angústia


      Quem sou eu? Não é uma pergunta retórica. 
     Uma mulher de 79 anos que passou 49 esperando ansiosamente para morrer não parece ser ninguém muito importante ou impressionante. Ainda espero, se escrevo. Quarenta e nove anos sem sentir um gosto, pelo menos bom, em viver. Difícil admitir isso. Difícil organizar palavras para transmitir "sem tirar nem pôr" essa minha angústia que percorre décadas. Não sou capaz nem de inventar outro nome, outra idade, outro contexto e outros personagens para a trama, já que isso é tão meu que não consigo alhear. Sem falar que é melhor falar dos personagens que conheço, porque tenho até medo de pensar nos demais que povoam esse mundo. Dá uma aflição. Em tu não dá não?

      Esse mundo tá mesmo amarelo. Eu reclamo da comida que minha filha traz na marmita diariamente. Tanto ela traz a marmita diariamente como eu reclamo diariamente. Sabe como é, né? Preciso botar pra fora esse engasgo de vida. Preciso vomitar minha inquietação diante da simplicidade forçada de tudo. Também não quero que ninguém saia de casa. Ninguém passeia! Todos fiquem comigo, em silêncio, desfrutando de sua própria solidão, por favor! É pedir muito?

      Na hora que acontece os acontecidos não temos noção do todo. Só depois que vira história. A minha estória foi triste e acabou há muito tempo. Há 49 anos foi escrito: "etc" para resumir o que aconteceu até hoje. O intuito não é contar cinquenta anos da minha vida, e sim falar o quanto é caótica essa invenção que é viver e fazer pensar: o quanto você ainda pode fazer, pensando fora dos seus "limites". Conclua: "não tenho limites". São só linhas imaginárias, como as que tem no globo terrestre de plástico empoeirado nesta biblioteca: greenwich, equador.

     Que sorte a sua de ler o que eu passei 49 anos para descobrir. Ainda assim em mim está só a teoria, não tenho mais força de vontade nem disposição física pra isso. Minha vida é passado. Meu presente é essa cadeira de balanço e meus crochês. Minha vida foi tudo o que eu deixei lá atrás. Você escolhe até suas escolhas. Depende da sua mente. Da sua fantasia.

     Eliminei meus contatos afetivos porque me tornei uma velha chata e difícil de aguentar. Mostro pros meus filhos e netos diariamente como não se deve viver e repito como essa comida é horrível só para ouvir em contrapartida, que para eles, "é o melhor almoço da redondeza". Tenho certeza que não é de hoje. "Requentada".

sexta-feira, 11 de março de 2011

Minha amiga da classe primária



     Bateu logo aquele susto que costumamos disfarçar com um sorriso de surpresa boa. E o susto é justamente o curto circuito de todas as poucas lembranças de um passado meio embaçado, misturadas com pensamentos do tipo: “o que eu devo falar? (...) ela teve uma menina ou um menino? (...) e tá loira, vou falar do cabelo”, até que vocês quase cruzam os passos e (explosão!):

- Menina! Tudo bom?
- Caramba! O que? Uns 7 anos?
- Por aí... Ta fazendo o que da vida?
- Tou trabalhando na Escola Viva e no Instituto de Psicologia, e tou me formando no final do ano também, tudo atribulado, uma correria só... E você? Magrinha como sempre ein...
- Poxa... Você cresceu ein, tá falando que nem gente grande mesmo... Eu ainda estou no meio do meu curso e só dei umas aulas de português em algumas escolas, mas por prazos curtos...
- Professora é? Só podia ser... E como tá todo mundo na tua casa? Tua mãe? Fazendo muita lasanha?
- Haha, é, tá todo mundo bem... Agora ela faz de frango também, ela andou aperfeiçoando... E com a tua família?
- Voltei a morar lá com Sophia, painho e mainha, em Lagoa Nova, naquela mesma casa... Passei um tempo morando só, mas a pensão e os meus salários não tavam dando conta de babá, creche e fraldas.
- Vixe... Difícil... E esse aí é teu namorado?
- Não, ex...
(...)
- Ei, Nena, vou sentar ali, estou varada de fome...
- Tá certo, mande lembrança pro pessoal lá e um beijo em Sophia.
- Ok, pra todo mundo de lá também, saudade de você, a gente podia combinar alguma coisa...
Aí você pensa: “ela vai continuar mesmo com isso? Ela vai pedir meu telefone?”
E aí ela vai revirando a bolsa, com aquela pressa, atuando um esforço descomunal e quando finalmente  consegue alcançar o celular, fala ao mesmo tempo em que o tira:
- Me diga aí seu telefone, que eu acho que não tenho mais...
- Ah, sim, anote: 87234545, me dê um toque aí que eu anoto o seu.
- ...
- Pronto.

     Sem contar que todo esse tempo você teve platéia. Enquanto você e a sua melhor amiga da primeira década de sua vida se entusiasmavam em não ter mais nenhuma intimidade e se esforçavam para continuar com aquele hipócrita interesse, seu amigo que ainda não foi levado pelo tempo ouvia e percebia tudo sentado próximo a você na mesa. Então quando ela sai, após um sorrisinho de tarefa comprida, você o olha meio que para dar uma satisfação e diz:
- Eu joguei Mario World com essa menina dos 7 aos 11 anos de idade... e sabe o que é pior?
- O que? (de boca cheia)
- Nunca zeramos.

Nota: Que tristeza é você desconhecer.